terça-feira, 3 de abril de 2012

Segundo capítulo do livro - Concepções de Campo


PRIMEIRA PARTE do Livro
Uma Filosofia da Educação do Campo que Faz a Diferença

Versão incompleta para críticas e complementações
                         Abdalaziz de Moura

O ESTUDO DAS CONCEPÇÕES

Capítulo Segundo

2.      AS CONCEPÇÕES SOBRE O CAMPO BRASILEIRO

1.       A cultura tradicional pinta diversos quadros sobre o campo. A primeira ressalva a se fazer é que o campo não é único, nem igual, e sim diferenciado em todas as dimensões e aspectos. Com o crescimento das populações urbanas, o campo passou a ser considerado sempre em relação à cidade e é comum comparar as coisas boas da cidade com as coisas ruins do campo, ou as coisas ruins da cidade com as coisas boas do campo.

2.       Há quem diga que toda comparação é manca. Esclarece uns aspectos, mas esconde outros. Portanto, cuidado com as comparações campo-cidade para compreender o campo. Pode trazer equívocos. Porém, como as comparações fazem parte do imaginário coletivo, da cultura não podemos fugir de comparações. Vamos descrever alguns elementos desse imaginário que desfavorecem uma concepção positiva do campo.

2.1.O CABO DA ENXADA

3.      O aumento da migração para as cidades, o surgimento de outras profissões, de máquinas, de equipamentos contribuíram para um imaginário que associou o campo ao “cabo da enxada”. Mas existem outros fatores históricos que reforçaram essa ideia, tais como o resultado produzido pelo trabalho da enxada “que puxa cobra para os pés do trabalhador e riqueza para os pés dos outros”, a pouca remuneração, o cansaço físico, a antiguidade da ferramenta. 

4.      O uso pelos escravos, pelos trabalhadores, pelos negros, pelos pobres quase nunca pelos senhores. A enxada passou a ser um elemento de identificação de uma categoria social, de uma classe social, assumida tanto pelos que a usaram, como pela sociedade. Ter as mãos calejadas pelo uso da enxada foi uma forma do trabalhador se apresentar quando procurava um sítio, um trabalho nos engenhos e nas fazendas.

5.      O agricultor para comprovar que era trabalhador bom apresentava suas mãos calejadas! “Olha aqui patrão para minhas mãos, veja que eu sou trabalhador... que eu sei trabalhar”. Na infância, o autor desse texto presenciou várias vezes cenas como estas de pessoas que procuravam trabalho nos engenhos. Esse trabalho por não exigir leitura e escrita ficou associado ao contrário da escola. Ir para a escola tornou-se o sonho de se libertar do cabo da enxada.

6.      A escola desenvolveu magistralmente essa função. Quanto mais estudantes ela conseguisse tirar do cabo da enxada, melhor estaria cumprindo seu papel! Motivo de orgulho de toda professora do campo: livrar as crianças, adolescentes e jovens desse estigma. Agricultura então se converteu em sinônimo de enxada! Assim, como a escola ajudava os estudantes a se libertarem do cabo da enxada ajudava a se libertarem da agricultura!

7.      Assim a escola reproduziu o que a cultura já estigmatizava, a avó, a tia, a mãe, o pai e a sociedade no seu conjunto. A escola põe seu selo, legitima, oficializa mais ainda o pensamento generalizado. A associação da enxada a agricultura reduziu drasticamente o significado da agricultura. Apenas um instrumento usado na agricultura passou a significar, a simbolizar todos os demais instrumentos, atividades, serviços da agricultura.

8.      A escola foi sendo vista como o contrário da agricultura. Agricultura era o atraso e a educação escolar era o desenvolvimento, a modernidade! Portanto, nem pensar em dialogar com o atraso, investir no atraso, reconhecer saberes, interagir com os conhecimentos ligados ao atraso! Há professoras que tremem ao escutar falar em educação do campo, pois pensam que seria a volta ao atraso, do qual ela já saiu e não quer mais saber. Quanto mais distante, melhor!

2.2.O JECA TATU[1]

9.      Outra associação perversa com o campo foi a de Monteiro Lobato na literatura e de Massaropi no Cinema. O camponês é aquele tipo matuto, mal vestido, tímido, que fala uma linguagem diferente da gramática, que segura o chapéu entre as mãos com a cabeça baixa e é tímido para falar. Ideia assumida tanto pelos próprios, como pelo povo da cidade. Nas salas de aula da cidade que recebem estudantes do sítio, as duas culturas chocam, mas se reconhecem.

10.  Monteiro Lobato descreve o Caipira de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, momento que o país se defrontava com o impacto da urbanização, da modernização, do sonho do desenvolvimento. Para esse momento, o Jeca Tatu era o personagem que nem estava aí para nada, não se incomodava com nada, e não tinha vontade de mudar. “Não demonstrava fazer planos, nem tão pouco aspirava mudar o mundo” (Rangel, 2011).

11.  O mobiliário cerebral de Jeca, à parte do suculento recheio de superstições, vale o do casebre. O banquinho de três pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo se reedita dentro de seus miolos sob a forma de ideias: são as noções práticas da vida que recebeu do pai e sem mudanças transmitirá aos filhos”[2].
O Jeca era o acomodado por natureza, satisfeito com o atraso, o subdesenvolvimento.  Nada de mudança e conformação com o atraso.

12.  A influência de Monteiro Lobato com o Jeca Tatu foi perversa para o campo. Segundo Rangel, “antes da criação do Jeca Tatu, a imagem do Caboclo era representada de forma extremamente romântica. Era exaltada a religiosidade, a tradição, mas pouco se falava da vida miserável que os caipiras levavam” (op. cit. p. 63). Inicialmente, Monteiro Lobato julgava o Jeca como responsável pela sua situação. Segundo Rangel depois ele o vê como vítima.

13.  Monteiro Lobato não escreveu só o que tinha em sua cabeça, ele transmitiu um pensamento da época, uma concepção sobre o habitante do campo, sobre o perfil do camponês. Veremos adiante que o que Lobato descreve na literatura, outros famosos escritores descreveram na sociologia, na história. Enfim, é uma concepção de classe social predominante na cultura que concebe a classe dominada, subalterna, oprimida do campo e se reproduz na sociedade.

14.  O autor desse livro ouviu relatos de professoras e de alunos que se sentiram discriminados pelos colegas no final do século XX e início do XXI por viverem nos sítios. Também relatos dos que introjetavam os próprios preconceitos, tinham vergonha da sua identidade, negavam quando podiam. Há também os relatos dos que reagiam e se afirmavam caprichando nos estudos para tirar notas boas e poder mostrar que eram do sítio, mas eram capazes, estudiosos.

15.  Há também a visão disfarçada do preconceito, como o das comadres que se encontram na rua e uma dá notícia do namoro de seu filho: “ele está namorando uma menina do sítio, mas pense que menina limpa e educada (apesar de ser do sítio)”! Para essa comadre, a menina ser do sítio é ser suja, mal vestida, cabelos despenteados! Esse quadro vem mudando radicalmente, mas o imaginário ainda se pinta desse jeito.

16.  Eis aí o grande risco em pensar o campo como o lugar, o espaço que tem que ser mudado a partir da ótica da cultura dominante. Como quem soubesse o que o campo precisa é a cultura dominante, urbanizada, repetindo o mesmo paradigma que os países ricos queriam determinar para os países pobres e em via de desenvolvimento. O preconceito era introjetado e as elites dos países pobres tinham como modelo os países desenvolvidos do ocidente.

17.  Uma infinidade de providências foi tomada pelo poder para modernizar o Jeca Tatu. Da alfabetização de adultos à educação comunitária até a Assistência Técnica e Extensão Rural. O camponês precisava desenvolver-se, ou seja, integrar-se na sociedade moderna, desenvolvida, urbanizada. Tinha que ser educado para a saúde, para a leitura do código escrito, para o desenvolvimento comunitário, para a assistência social e a extensão rural.[3]

2.3.O RETIRANTE

18.  Para o Nordeste, não é o caipira, mas o retirante do campo, escapando da seca. A poesia de Patativa do Assaré divulgada na música de Luiz Gonzaga Triste Partida ilustra muito bem o quadro. O campo é abandonado pela necessidade da sobrevivência. O que fica são lembranças próximas ou remotas de “um sol escaldante, um mandacaru, uma caveira de boi que morreu de fome”. Quem é que não viu esse quadro pintado, descrito, ou imaginado!

19.  Durante muito tempo esse tem sido o retrato que a cultura escolheu para representar o semiárido brasileiro no imaginário coletivo. Espaço geográfico de pobreza que deve ser abandonado por quem resolveu buscar oportunidades de progresso. Quem ficou é porque faltou chance ou decisão na vida. Nada dessa realidade serve para livro didático, a não ser referências isoladas no livro de geografia [4], apesar de vasta literatura dos poetas sertanejos.

20.  Essa cultura se reproduz no imaginário: Olha aí o resultado de quem não quis sair por bem, terminou saindo por mal! Não foi atrás das oportunidades, preferiu ficar no campo, olhe agora o resultado! Por que não escutou o conselho da professora! Agora a retirada foi forçada! Podia ser tranquila se tivessem migrado antes! Os tecnocratas concluem então, que o Sertão precisa ser abandonado ou reformado de acordo com as concepções que eles têm sobre o semiárido.

21.  A Política Nacional se mobiliza para combater a seca, cria o INFOCS (Instituto Nacional de Fomento às Obras Contra a Seca), depois o DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra a Seca) para cuidar do desenvolvimento do semiárido, atrasado, em água, sem oportunidades. Em 1984, Betinho diz no Seminário sobre o Homem e a Seca no Nordeste, em Caucaía – CE que o problema não  é a Seca e sim a Cerca dos latifúndios improdutivos.

22.  Há quem reaja negativamente a Educação do Campo no semiárido porque vêm logo em sua cabeça as imagens do retirante, da seca, da pobreza. Acham que o semiárido já se modernizou e o que precisa agora é de projetos, de irrigação, de urbanização. Temem que a Educação do Campo venha trazer o atraso, estudar o passado, a caatinga, a pobreza e propor que os jovens fiquem no campo atrasado! Nem sempre verbalizam dessa forma, mas insinuam.

2.4.O RESTO, A SOBRA, O RESÍDUO, O CAMPO DO IBGE

23.  O IBGE desde o primeiro censo definiu que o campo era o espaço de quem morava isolado nos sítios, fazendas, engenhos, fora de um aglomerado de casas. Segundo essa definição a população rural diminui a cada década e o cenário futuro é de que vai acontecer o mesmo que aconteceu nos países capitalistas desenvolvidos: vai ficar um resto, um resíduo, uma sobra. Os gestores públicos estudam e governam a partir desses dados[5].

24.  Na hora de distribuir os recursos, planejar os investimentos é evidente que vão fazer a favor da maioria que migrou, que está nas cidades, que as escolas, os postos de saúde têm prioridade na cidade, inclusive, os votos estão concentrados na cidade! Fechar escola no campo passa a ser um resultado desse processo inevitável e incontestável! Entre investir no campo e na cidade a preferência é evidente pela cidade e as justificativas nessa visão são incontestáveis.

25.  Os governantes como os indivíduos não querem se identificar com o resto, com o que ficou para trás. Seria ficar contra o desenvolvimento, a modernidade. O autor recorda da resistência de todo um grupo de professoras do Município de Surubim a 90 km de Recife, quando o Secretário de Educação as convidou em 1995 para uma Capacitação de Educação do Campo. Elas diziam que sua área não era mais do meio rural, que as pessoas trabalhavam na cidade.

26.  Surubim é um município no qual durante o verão os pais de família migram muito para trabalhar em recife, na construção civil, em empresas de segurança, na Ceasa. As professoras sentiram-se ofendidas pelo fato do Secretário identificar a área como rural. Foi como se estivesse considerando-as como ensinando no lugar atrasado. Elas diziam que a “cidade já chegou lá” pelo fato das pessoas trabalharem nas cidades, mesmo continuando morando no campo.

27.  Na gestão municipal, a área rural, identificada como área agrícola e pecuária era o lugar aonde as professoras iniciavam o magistério e ficavam lá até o momento de progredirem, de encontrarem um apadrinhamento político e vir para a cidade. Era e em alguns lugares permanece, o lugar para destinar os desafetos do poder político. Quem não rezar na cartilha é transferida para o meio rural, lugar longe da cidade, do desenvolvimento, próximo do atraso.

28.  Além disso, a escola rural era pintada como a escola de segunda categoria, onde tudo que tinha na cidade, lá era só a caricatura: o prédio, as instalações, os móveis, os materiais didáticos, as exigências didáticas. A professora também, ou é do lugar mesmo, ou se é da cidade, chega tarde, sai cedo por conta do transporte. Esse quadro na realidade já mudou, mas o imaginário da cultura ainda tende a ver tudo que é do campo como de segunda categoria.

29.  Essa mentalidade não está ainda superada na gestão pública. Uma análise rápida dos programas para a Educação do Campo revela como esse pressuposto permanece presente na definição e gestão das políticas de Educação do Campo. Tanto o Programa Escola Ativa como o Projovem Saberes da Terra, como o Procampo sofrem contínuas restrições de recursos na burocracia nacional. Enquanto, os programas da cidade não sofrem.[6]

30.  As Secretarias Estaduais de Educação com raríssimas exceções ainda não aplicam Educação do Campo, mal reproduzem os programas do MEC. E a grande maioria dos municípios nem chegam a suspeitar que já existe um caminho andado nessa direção. Em dois momentos de 2011 e 2012 o MEC suspendeu os recursos para os cursos de licenciatura em Educação do Campo. Não se viu falar de nenhum outro programa urbano com essa restrição.

31.  Para dar continuidade professores, alunos e parceiros tiveram de se mobilizar, tentar encontrar-se com a Presidente Dilma Roussef em uma viagem a Salgueiro em fevereiro de 2012[7]. É de se observar que não foram as instituições que se mobilizaram, mas os professores e os alunos. Os cursos de licenciatura funcionam como estranho no nível nas autarquias. É sempre o resquício de considerar o campo como algo que não merece tanta atenção.

32.  Com essa concepção há pessoas que temem a educação do campo nas cidades. Consideram um atraso. Temem assumir a Educação do Campo numa escola da cidade mesmo que os alunos sejam do campo em sua grande maioria! Preferem que fique apenas na área rural. É como se a cidade não comportasse, como se fosse humilhante ter na cidade uma escola do campo. Poderia parecer atraso, não reconhecer o desenvolvimento o município.

33.  E isso não é de hoje. O Programa dos Centros de Educação Rural – CERU de Pernambuco, todos os dezessete em menos de 10 anos se reduziram a Escolas Urbanas na década de 80 e 90. Prefeitos que tiveram a oportunidade de construir escolas bonitas, espaçosas no campo ouviram comentários da população como se tivessem gastando demais com o meio rural, que o meio rural não precisaria de um investimento desse porte!

2.5.MEIO RURAL, SINÔNIMO DE AGRICULTURA

34.  Outra concepção vigente na opinião pública é a de pensar o meio rural e o campo como espaços da agricultura ou da produção agropecuária. O meio rural já superou essa fase. O campo hoje vive uma contínua e permanente mudança de ambiente, de hábitos, de meios e formas de vida. É multifuncional, como muita gente mora no campo e trabalha na cidade, o inverso é também verdadeiro. A renda das famílias não é mais unicamente da agricultura.

35.  O pessoal do campo não vem à cidade simplesmente para trazer seus produtos. Vem para estudar, para cuidar da saúde, da estética, da vida social, da cultura, das relações familiares, das igrejas, dos sindicatos, das cooperativas, do esporte. Muitas pessoas vêm trabalhar. Há municípios rurais com atividades industriais, de confecção, de agroindústria. O campo hoje é multifacetado, diversificado. Mas essas manifestações não lhe tira o caráter de rural.

36.  É que agora as atividades não são só rurais, agrícolas. São ocupações rurais não agrícolas (ORNA).[8] Um dos equívocos com a Educação do Campo é confundir com o ensino e a profissionalização da agricultura. O próprio Programa Saberes da Terra de acordo com a Nota Técnica do FONEC caiu nesse equívoco quando associou a Educação do Campo à profissionalização da agricultura. No campo hoje a profissionalização é muito diversificada.

37.  Só que esse caráter multifuncional, diversificado, não tira a razão de ser do campo, a sua originalidade. Mas, acrescenta, revela sua capacidade de se adaptar, de se reconstruir e se refazer. O campo não é nem melhor, nem pior que a cidade, não convém estar comparando as coisas boas do campo com as ruins da cidade, nem vice-versa. E sim, reconhecer as diferenças, as interações, as reciprocidades. Para isso a Educação do Campo é fundamental.

38.  A educação convencional olha para todos esses fenômenos como se fosse o fim do campo, o fim da agricultura! A Educação do Campo olha o mesmo fenômeno com outra concepção. Como diversidade, como mudanças, como cultura, como condições e oportunidades de desenvolvimento, de trabalho, de geração de renda que precisam na escola ser transformadas em conteúdos de aprendizagem, objeto de pesquisa, ensino das disciplinas.

2.6. A MATRIZ IDEOLÓGICA MARXISTA

39.  Mesmo os grupos que quiseram fazer mudança no país, que atuam e sonham com o socialismo, os revolucionários, os grupos e partidos de esquerda, os partidos socialistas também têm suas concepções sobre o campo que se apresentam como avançadas, porém, assumem concepções de consequências perversas para o campo. Convém lembrar que não são apenas os grupos conservadores que alimentam concepções perversas para o campo.

40.   Durante muito tempo as análises sobre o campesinato brasileiro eram feitas sempre a partir da experiência europeia. Partia-se do princípio de que o camponês não faz revolução, quem faz é o operário. O camponês poderia chegar a ser apoio, favorecer, contribuir com uma revolução, mas, seu comportamento seria na melhor das hipóteses, o de um pequeno burguês! Ele não assumiria o espírito de um revolucionário, por conta de sua própria condição histórica.

41.  Essa análise foi feita levando em conta diversas reações dos camponeses europeus do século XVIII, XIX. Nos países industrializados que lideraram a revolução industrial foram os operários que estiveram à frente da resistência contra o capitalismo. Foram eles que formaram uma “consciência de classe” para se opor ao regime. Segundo Marx, os primeiros países socialistas seriam a Inglaterra e a Alemanha, por conta da classe operária ser mais avançada.

42.  Apesar dessa visão de futuro de Marx não ter se confirmado as análises teóricas permaneceram olhando os agricultores como forças importantes para serem mobilizadas, porém sem capacidade de definir uma mudança social revolucionária. Era uma posição ortodoxa. Mao :Tse Tung na China conduziu a revolução contando sobretudo com as massas camponesas. Para isso, teve que convencer o partido comunista chinês  de que a história e a realidade era outra.

43.  No Brasil houve grupos que iniciaram mobilização revolucionária no campo em diversos estados do sul, nordeste e sudeste e a partir dessa análise abandonaram o campo de onde estavam para atuar nas áreas de assalariados rurais ou urbanos. Estavam convictos que com os agricultores tinham esgotado as possibilidades de avançar para além do que conseguiram. Ou seja, os agricultores não iriam assumir as mudanças que precisavam ser feitas.

44.  Um desses grupos relata essa história no livro Em Busca de Novos Caminhos, Experiências Vividas nos anos de Chumbo, publicado em 2010 pela Editora Pacartes de Porto Alegre. Os autores e organizadores reavaliam que essa visão foi um equívoco, uma interpretação do marxismo sem levar em conta que a realidade brasileira tem características bem particulares em relação a história da Europa.[9]

45.  As consequências práticas e concretas nos movimentos políticos, sociais e na gestão pública foram e continuam sendo graves para o campo. Vários governos estaduais são hoje de partidos tradicionalmente conhecidos como de esquerda. No entanto, em termos de políticas para o campo, não se diferenciam uns dos outros. O mesmo acontece com os prefeitos nos municípios. Olhando para as políticas para o campo não dá para se perceber de que partidos são.

46.  O Governo Federal, mesmo com todos os avanços que conseguiu, arrasta-se para assumir Educação do Campo. Ainda não tem política, tropeça nos poucos programas que assumiu e assim mesmo, esses revelam exatamente o quanto o campo não é relevante para a política. O desprezo de como o Governo Federal trata o próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário, a Reforma Agrária, os órgãos e instituições que pensam o campo é sintomático!

2.7.O CAMPO MODERNO DO AGRONEGÓCIO

47.  Outra concepção do campo brasileiro é a do Agronegócio. O campo que se modernizou, se mecanizou, se informatizou, que participa do mercado internacional, que interfere na balança comercial brasileira. O campo que está na mídia, nas universidades, no mercado, o campo da frente “ruralista” no Congresso Nacional. O Campo produtor e consumidor de insumos, integrado com a globalização, que leva a produção nacional aos países consumidores.   

48.  Motivo de orgulho nacional nas reportagens da mídia escrita e televisionada concebe o Campo brasileiro como desenvolvido, tecnificado e profissionalizado. Tem ao seu favor o ensino da academia, dos institutos federais de educação, as empresas de pesquisa, a mídia nacional e estrangeira e o capital financeiro investindo sempre mais. Com o peso político e econômico consegue influenciar as instâncias públicas e a política nacional.

49.  Para entender como funciona o capitalismo no campo, remeto o leitor para a leitura do texto Para Entender as Mudanças que Acontecem no Campo, de minha autoria em mouraserta.blogspot.com entre os textos sobre história da Educação do Campo. A partir da situação da cana-de-açúcar pode-se inferir a de outros produtos como a soja, o café, a pecuária, a laranja, o cacau, e a produção dos perímetros irrigados.

50.  Essa concepção é muito comum e explicitada na mídia, na gestão pública e na academia, é fácil observá-la. Não precisa descrever aqui. Para o Agronegócio a Educação do Campo é para reforçá-lo, fortalecer esse mercado crescente, carente de mão-de-obra especializada, gerador de emprego. Não tem muita diferença da Educação Urbana que cobra preparação para o mercado cada vez mais competitivo a nível nacional e internacional.

2.8.CONCLUSÕES

51.  Com essas sete maneiras de conceber o campo brasileiro fica mais fácil entender a Educação do Campo. Poderia acrescentar outras que existem e permeiam a visão do campo, dos movimentos sociais e populares dos povos do campo, desdobrar algumas, mas para uma visão do conjunto são suficientes para entender que existem visões diferentes, parecidas, contrárias e até antagônicas. Elas ilustram as diversas formas de conceber a Educação do Campo.

52.  Conforme se entenda o campo, seu papel, sua história, suas relações com o desenvolvimento do país vai se desenhar a Educação do Campo. É evidente que nenhuma dessas concepções dá conta da compreensão do campo brasileiro. Porém, para pensar a Educação do Campo é preciso levar em conta a existência delas e de outras, entender as circunstâncias históricas que contribuíram para uma e para outras. Não existiriam se não houvesse uma história que as concebeu.

53.  Alguns preconceitos contra a Educação do Campo alimentam-se nas concepções que se têm do campo. O autor fez questão de colocar o debate sobre as concepções porque ele abre, revela, amplia a questão da Educação do Campo, da ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural), das Políticas Públicas e da Gestão dessas Políticas. Em geral, o debate sobre essas temáticas não atingem as concepções, os pressupostos teórico-metodológicos que estão subjacentes.

54.  Quando colocam os princípios, os fundamentos, as bases teóricas não conseguem fazer a ponte com a realidade do cotidiano, aparecem como algo deslocado, distante da realidade em questão. A burocracia, o sistema de ensino, a gestão pública, a insegurança e o medo colocam uma barreira que impedem os princípios de chegarem ao cotidiano. É grande a boa vontade dos envolvidos, mas os instrumentos à sua disposição lhes amarram e os limitam a assumir apenas as questões operacionais, financeiras, de gestão dos programas.


[1] . RANGEL, Ingrid Ribeiro da Gama, Jeca Tatu, retrato de um país desigual, in Revista Vértices, Publicação Científica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, Jan./abri. 2011, V. 13, n.1, pp 61-72
[2] Lobato, Monteiro, in Urupês, 1986, pg 152, apud RANGEL.
[3] . A literatura é muito ampla. Ver Paulo Freire,......, Vanilda Paiva, Educação Popular, Carlos Rodrigues Brandão, Da Educação Fundamental ao Fundamental da Educação... Literatura do MEB. Por ocasião da publicação, vamos apresentar uma bibliografia.
[4] . sobre esse assunto, Alexandrino Pereira Neto escreveu uma monografia para o curso de licenciatura em Educação do Campo, do Centro de Sumé, UFCC-PB, em outubro de 2011, com riqueza de detalhes, analisando duas escolas do Município de São José do Egito, Sertão do Pajeú – PE.
[5] . Para mais detalhes, o leitor pode procurar o livro de Eli da Veiga, Cidades Imaginárias.
[6] . Veja nota técnica do FONEC sobre Escola Ativa em 2011 e sobre os Saberes da Terra em 2012.
[7] . Ver o blog do curso de licenciatura da AESA.
[8] . Ver o número Marco Social do Instituto Souza Cruz sobre a Multifuncionalidade do Campo
[9] . SANTOS, Carmil Vieira et alii. Os autores são pessoas que na década de 80 romperam com o Movimento ao qual pertenciam pela radicalização que a direção nacional assumiu em só fazer parte do movimento quem fosse trabalhador assalariado. Quem não fosse, não podia ser mais considerado militante e sim, apenas apoio. Os protagonistas, os sujeitos da mudança teria que ser os operários.