quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O QUE SE PODERIA FAZER COM A EDUCAÇÃO ESCOLAR NOS TERRITÓRIOS DA CIDADANIA

O QUE SE PODERIA FAZER COM A EDUCAÇÃO ESCOLAR NOS TERRITÓRIOS DA CIDADANIA

Abdalaziz de Moura, Filósofo, Teólogo e Educador

O Serta – Serviço de Tecnologia Alternativa, entidade que faço parte foi selecionado numa chamada pública da SDT Secretaria de Desenvolvimento Territorial do MDA – Ministério de Desenvolvimento Agrário, 001/2011, para Apoiar Ações de Custeio do Programa Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais. Tarefa e desafio extremamente complexo para seus educadores, técnicos, parceiros, financiadores, interlocutores por múltiplas razões. Esse texto é o primeiro de uma série com objetivo de contribuir com a reflexão sobre a temática do Desenvolvimento Territorial.

1.      O lugar do “local” no paradigma das ciências modernas

Segundo Edgar Morin e tantos outros autores, o Local não existe para a ciência moderna. Não cabe dentro de seu paradigma positivista.  Se existe e é tratado por alguém, não é significativo, nem relevante para a ciência. O que existe e interessa é o Universal, que pode ser abstraído e serve para o mundo todo, é verdade no oriente, no ocidente, no norte no sul, nos países pobres, nos ricos, para os negros e para os brancos, para os homens e para as mulheres.

O Local é muito próximo das pessoas, não pode ser generalizado, abstraído, universalizado. É suspeito para a verdade da ciência! Corre o risco de ser envolvido nas paixões da subjetividade, nas disputas dos interesses particulares! O local é muito ligado a culturas, territórios, histórias, religião, mitos, saberes e sabores, ideologias, preferências, opiniões. Tudo, realidades suspeitas para um paradigma de verdade que se pretende universal, racional, neutra!

 Os pais da ciência moderna Francis Bacon (1561 – 1626 - inglês) René Descartes (1596 – 1650 - francês), Galileo Galilei (1564 – 1642 - italiano) empreenderam em sua época lutas para encontrar um método que lhes dessem garantia de que a verdade não se misturaria com as realidades que dependessem da subjetividade, das emoções, dos sentimentos, das paixões; e, portanto, da arte, da cultura, das raças, das etnias, dos territórios, do mundo sobrenatural.

 Desde então colocaram as bases de um método que pudesse garantir uma verdade que pudesse ser tão universal quanto a matemática, que pudesse ser decomposta em partes menores, verificadas, testadas, comprovadas e depois juntadas novamente, para daí então, concluir sua veracidade. Para conseguir uma proeza dessa natureza, só podia ser com a razão, pois só essa podia abstrair e universalizar!

 Para se livrarem da fogueira da inquisição na época foram ainda mais longe! Tiveram que fazer um acordo tácito com a Igreja, que eles estariam fazendo ciência só sobre as coisas materiais, que não iam se meter em fazer ciência com a realidade espiritual e sobrenatural. De modo que a Igreja poderia ficar tranqüila que eles não ameaçariam os seus dogmas. A igreja ficaria com essas realidades e eles (a ciência) ficariam com as realidades materiais!

Para a época foi uma grande conquista, pois até então, a ciência estava muito misturada com outras formas de conhecimento, com a filosofia, com a teologia, com o mito, com as lendas e a humanidade ficava impedida de avançar com essa mistura. Era preciso depurar, separar, distinguir. Ciência é uma coisa, filosofia é outra, teologia é outra, senso comum é outra e assim por diante.  Os que se seguiram a esses três exarcebaram ainda mais essas conclusões.

Criaram um método que garantisse esse percurso de chegar à verdade e à ciência, sem erros e sem falhas. Pois, se tivesse erro, comprometeria a ciência! Então, tinha que voltar para corrigir o erro e prosseguir na busca da verdade. Esse método foi chamado de positivista, aperfeiçoado ao longo da história. Ele possibilitou tantas conquistas que a época que se seguiu foi chamada de iluminista. Os cientistas passaram a ser considerados iluminados (cheios de luz).

 Gabavam-se de que a humanidade havia chegado à idade da razão e superado a idade das trevas. Agora a humanidade poderia viver o tempo da “ordem e do progresso”. A ciência podia caminhar com seus próprios pés, sem tutela da igreja! Não tinha mais barreira, porque estava livre da contaminação do mito, da filosofia, da religião, da subjetividade. A tarefa agora seria iluminar os que estavam sem essa luz, os alumnus!

 A escola moderna como temos hoje se apropriou desse termo para explicar a sua missão de ensinar = dar a luz para quem não tem. Para garantir a luz da ciência, da verdade era preciso garantir um método! O aluno tinha que provar que estava usando bem sua razão e que estava se desligando de tudo que pudesse comprometer seu aprendizado. Era preciso distanciar-se das emoções, paixões, arte, cultura, família, política, esporte, religião.

Tudo o que comprometesse o conteúdo universal, abstrato da ciência deveria ficar para outro plano. Em síntese, esse paradigma firmou-se no mundo moderno, tomou conta das instituições do Estado, da Gestão Pública. Produziu um sistema de garantia centrado na Academia e instâncias educacionais. Porém, há questionamentos ao modelo feitos na busca de outro paradigma para as ciências. Vejamos conseqüências na educação dos territórios.

2.      OS NÚMEROS DO “LOCAL” NOS TERRITÓRIOS DE PERNAMBUCO

 Estudando os Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável do Estado de Pernambuco[1] fui me interessando por um dado que me chamava a atenção, o número de matrículas do ano de 2009 nos respectivos territórios. Tomei a iniciativa de colocar tudo numa coluna e somar para ver quantas horas por dia, semana, mês e ano são consagradas ao estudo. Proponho que o leitor acompanhe esse raciocínio, que sempre fiz com professoras municipais.

Veja na tabela abaixo os números de seu território. A primeira coluna trata da população do censo do IBGE de 2010. A segunda do número de matrículas no ensino infantil, fundamental e médio de 2009. Não consta o número dos professores, nem das matrículas no ensino universitário. Na terceira coluna está o resultado de quantas horas por dia os estudantes consagram ao estudo. O cálculo é de 4 horas dia multiplicado pelo número de matriculados.

DADOS DAS MATRÍCULAS NAS REDES ESTADUAL, MUNICIPAL E PRIVADA
DE SETE TERRITÓRIOS DE PERNAMBUCO









TERRITÓRIO
População
Matrículas
Horas por dia
Horas por semana
Horas por Mês
Horas ano letivo

Mata Norte
577.793
155.054
620.216
3.101.080
12.404.320
         111.638.880

Mata Sul
468.853
135.775
543.100
2.715.500
10.862.000
97.758.000

Agreste Central
962.063
244.847
979.388
4.896.940
19.587.760
176.289.840

Agreste Meridional
587.086
165.059
660.236
3.301.180
13.204.720
118.842.480

Sertão do Pajeú
395.293
103.893
415.572
2.077.860
8.311.440
74.802.960

Sertão do S. Francisco
434.835
86.544
346.176
1.730.880
6.923.520
62.311.680

Sertão do Araripe
307.658
91.175
364.700
1.823.500
7.294.000
65.646.000

Totais
3.733.581
982.347
3.929.388
19.646.940
78.587.760
 707.289.840









 O cálculo é feito levando em conta que cada estudante consagra durante o dia 4 horas entre sair de casa, chegar à escola e retornar a casa. Há variações, pois tem gente que para fazer o percurso demora mais. Por semana, gasta 20 horas, por mês 80 horas e multiplicado por nove meses 720 horas. Nem cheguei a 800 horas do ano letivo. Se fossem considerar as horas do ano letivo, o número final seria ainda muito maior!

 Em 2009 foram 982.347 matrículas. Se fossemos acrescentar o número de horas consagradas por professores para dar aula, os alunos universitários, os alunos que usam duas jornadas e o tempo dedicado a dever de casa, chegariam a um milhão de matrículas. Mas vamos nos ater apenas aos números dos Planos Territoriais. São 3.929.288 horas por dia nesses sete territórios de Pernambuco.

 Consagram-se quase quatro milhões de hora por dia ao estudo e com essa concepção de ciência universal, racional e abstrata tanto faz ser nesses territórios, como nos do Paraná, como nos do Pará, como na Paraguai, como em Portugal. Ou seja, a ciência transmitida, os conhecimentos, os currículos, os valores são os mesmos em qualquer lugar do mundo!

 Quanto custa em recursos financeiros, em recursos humanos, materiais, em energia, em tempo consagrar 4 milhões de hora por dia aos estudos nos sete territórios e não se produzir conhecimentos sobre os mesmos! Em outro paradigma de ciência e de educação escolar, 4 milhões de horas consagradas a produção de conhecimentos produziria conhecimentos sobre toda a realidade dos territórios!

 Os rios, os relevos, a história, a cultura, as artes, as possibilidades econômicas, a agricultura, os ventos, a incidência de sol, as chuvas, as frutas, as plantas, a produção, a exportação, a importação, a política, enfim, a vida dos territórios estaria sendo estudada, pesquisada, transformada em produtos de conhecimento, textos, livros, monografias, teses, dissertações, poema, prosa, planilha, tabelas!

 Convido o leitor para imaginar o que de revolucionário teríamos se as escolas produzissem conhecimento sobre o seu contexto, em vez de repetir conhecimentos universais, descontextualizados! O quanto de vida, de ânimo, de interesse tomaria conta dos nossos educadores e educandos, se na escola pudessem se reencontrar com os saberes que explicitassem a vida, o trabalho, a família, o lugar que mora!

 Evidente que se trata de ciência também, mas com outro paradigma! Primeiro que não é neutra, muito pelo contrário! É comprometida com a realidade, com a mudança da mesma . Está do lado dos valores, da solidariedade, da equidade, da justiça. Portanto, não é neutra, está comprometida com as formas de convivência do semiárido.

Segundo que não é separada das concepções ou da filosofia. Ela concebe um semiárido como problema ou como oportunidade. E conforme seja a escolha, a “ciência produz conhecimentos e desconhecimentos” [2]. Ela seleciona para o currículo o que interessa e desconsidera o que não interessa. Nesse caso, poderá escolher os temas que interesse ao desenvolvimento dos territórios.

3.      Transformando em proposições concretas para os territórios

 Quantas oportunidades nós perdemos em garantir uma visão de ciência contrária ao desenvolvimento dos nossos territórios! Como nossas escolas e universidades poderiam ter produzido conhecimento sobre a realidade que nos cerca! Que acervos teríamos hoje em nossas bibliotecas, na internet, nos nossos arquivos! Como estamos pobres de conhecimento sobre nossas realidades!

No entanto, quanto tempo gastamos em aprender para for a? Se um professor anima um trabalho científico sobre a realidade local é uma exceção. Se uma escola desenvolve um projeto, é por fora do currículo! O que devia ser central e regra é exceção e tangente! Os envolvidos no desenvolvimento dos territórios, se quiserem alcançá-lo têm caminhos. Permitam-me considerar alguns.

§  Que tal as nossas escolas do ensino infantil, fundamental, médio, universitário e profissional incluir em seus currículos o debate sobre a Política dos Territórios! Não como disciplina nova, mas como conteúdo para desenvolver o estudo das disciplinas.  A Educação Escolar tem tempo, dinheiro, recurso humanos e materiais, sistema, profissionais, laboratórios; lá estão legitimados, reconhecidos; lá estão todos os dias da semana, de manhã, de tarde e de noite e muitos nos sábados!

§  Os encontros do colegiado dos territórios, das lideranças se sucedem esporadicamente, duram algumas horas, atingem poucas pessoas! E assim mesmo, já com agendas cheias, com pouco tempo para dedicar-se às iniciativas. Para esses encontros, temos que gastar transporte, convencer as pessoas a participarem! Já pensaram se as questões do território fossem também discutidas nas escolas?

§  Fica mais fácil conversar com nossos filhos sobre o que eles aprendem na escola! Fica mais fácil mobilizar a sociedade, porque os assuntos, as pessoas já viram na escola. Não vira assunto só de militantes, de movimento social, de Ong, de sindicato ou de agricultor familiar! Passa a ser assunto da sociedade. Passa a ser desafio de todos.

§  Experiências já existem, respaldo jurídico também, resultados já comprovam, validação já se dispõe, metodologias, conteúdos, dinâmicas e didáticas já são conhecidas. O que falta para se estabelecer um grande mutirão em cada território para que todas as modalidades de ensino apliquem educação contextualizada ou educação do campo! O que se pode fazer para assim acontecer?

§  O Governador de Pernambuco Eduardo Campo já se convenceu dessa idéia, atendeu a reivindicação do Grito da Terra Pernambuco, a demanda dos participantes dos seminários “Todos por Pernambuco” e assumiu o compromisso de iniciar a Educação do Campo em escolas da rede estadual. Essa decisão vai retomar o interesse dos municípios em 2012.

§  O Selo Unicef na edição de 2009 a 2012 assumiu a metodologia da Educação para a convivência com o semiárido e as escolas envolvidas estão estudando as suas disciplinas a partir de uma linha de base de cada município sobre saúde, educação, assistência social e meio ambiente. Pode ser uma referência em cada território. O que sempre se discute de modo isolado, as escolas vão unir.

§  Os cursos universitários, as escolas técnicas, as escolas de referências bem que poderiam ser convocados, provocados e desafiados a produzirem conhecimento, ensino e aprendizagem a partir de seus territórios. O Centro de Sumé da UFCG está dando um exemplo. É uma exceção, mas devia ser a regra. O Serta tem metodologia para estudar a realidade dessa forma em todas as modalidades.

§  Essa metodologia, o Serta disponibiliza para quem quiser se apropriar e aplicar em sua escola, em sala de aula, na gestão escolar, na Assistência Técnica, em programas sociais e de desenvolvimento. Informações sobre a mesma o leitor pode encontrar nos blogs mouraserta.blogspot.com, escolasdereferencia.blogspot.com, permaculturapedagogica.blogspot.com.


Bibliografia:

Autores e textos que falam sobre o paradigma da ciência: Boaventura de Sousa Santos em Um Discurso sobre as Ciências, Editora Afrontamento, Porto, Portugal 1995. Rubem Alves, Variações sobre o Prazer, Editora Planeta do Brasil. São Paulo, 2011. Marlene Rodrigues, Cartilhas da dominação, Editora da UFPR, 1991. Abdalaziz de Moura, Texto 03 – Introdução à Filosofia e Texto 04 – Filosofia e Educação Escolar disponíveis em mouraserta.blogspot.com. Giulio Girardi, Educare, per quale Societá! Cittadella Editrice, Assis, Itália, 1975. E os livros de Paulo Freire em geral ilustram um novo paradigma de ciência e educação.

Glória do Goitá, 25 de novembro de 2011.



[1] . Resumos executivos do PTDRS. MDA, SDT, IADH - 2011
[2] . Boaventura de Sousa Santos, Discurso sobre as Ciências, sétima edição, edições Enfrentamento, 1987, Porto, Portugal